Os livros fizeram parte da sua infância, de tal forma que, aos 15 anos, publicou o seu primeiro livro. Agora, com o romance “A Cicatriz”, lançado em 2024, Maria Francisca Gama procura fazer os seus leitores refletir sobre a violência de género. A autora natural de Leiria, de 26 anos, esteve à conversa com a FORUM, revelando inspirações e deixando conselhos para os amantes da escrita.   

Como surgiu a paixão pela escrita?

Desde pequena que sempre li muito. Esse gosto foi incutido pelos meus pais, que me levavam muito à Biblioteca Municipal de Leiria e à Biblioteca Afonso Lopes Vieira.  Li muito durante a minha infância e adolescência e acho que é inevitável [surgir a paixão pela escrita]. Quanto mais lemos, mais queremos contar também histórias. Comecei por ser leitora e depois quis tornar-me escritora. Quando era mais nova, com 13 anos, criei um blog onde escrevia quase diariamente textos, partilhas associadas a pequenos traumas e tristezas amorosas que fazem parte da idade. Dois ou três anos depois, escrevi o meu primeiro livro. 

Podes falar um pouco sobre o teu primeiro livro? O que é que sentes em relação àquilo que escrevias quando tinha 15 anos?

O meu primeiro livro chama-se “Em troca de nada”. Na altura, quis escrever sobre uma realidade que que me preocupava muito e que continua a preocupar: o  bullying. O livro era sobre uma jovem que era vítima de bullying na sua escola por causa de um boato que se propagava nos corredores. Hoje em dia, creio que o bullying é ainda mais doloroso porque se propaga muito mais facilmente através das redes sociais. Eu escrevi esse livro não com base exclusivamente em coisas que eu vi e vivi, mas também tendo em mente uma história que na altura me sensibilizou muito. Hoje em dia, esse livro já não está à venda. Se o escrevesse agora, seria muito diferente, porque cresci e a forma como olho para o mundo também mudou.  Continua a ser um livro do qual me orgulho porque foi o início do meu percurso.

 


«Acho que a adolescência é uma fase bastante crítica, porque temos muitos sonhos e muitas certezas, mas também somos mais inseguros do que em qualquer outra fase da nossa vida»


 

Os teus pais e professores sempre te incentivaram a escrever?

Sim.  Senti muito esse incentivo por parte dos professores na mudança de escola que fiz do sétimo para oitavo ano. Aí, tive duas professoras de português que foram muito importantes no meu percurso, na ótica de me darem confiança de que aquilo que eu fazia podia ser lido por outros e que não me devia envergonhar disso. Acho que a adolescência é uma fase bastante crítica, porque temos muitos sonhos e muitas certezas, mas também somos mais inseguros do que em qualquer outra fase da nossa vida. Portanto, o incentivo dos mais velhos é fulcral. Os meus pais também me incentivaram muito. O meu pai, em particular, achou sempre que eu era a melhor escritora que podia existir em Portugal e no mundo. Por isso, foi muito importante, para eu também fomentar esta crença de que seria possível ter esta profissão.

E o ser escritora sempre foi o teu plano A? 

Sim.  Poder escrever todos os dias sempre foi o meu plano A, porque é a coisa que eu mais gosto de fazer e acho que é aquilo que faço menos mal com menor esforço. É claro que não acreditei sempre que podia viver da escrita e continuo a não estar certa de que isso seja possível durante muitos anos. Acho que é ano a ano, estando dependente daquilo que publiquei anteriormente e da forma como é recebido pelos leitores. Mas sempre quis escrever todos os dias e fico muito contente de o poder fazer agora.

 

 

 

És licenciada em direito. O direito também era uma área do teu interesse? Como é que surgiu?

Para ser honesta, não me recordo, mas a minha primeira opção provavelmente foi estudar literatura ou alguma coisa relacionada com a língua portuguesa. No entanto, decidi estudar Direito porque também me via ser juiz ou advogada.  Eu tirei o curso e gostei do curso, da faculdade e trabalhei como advogada. Enquanto trabalhava, percebi que não dava para ser advogada da forma que queria e ser escritora da forma que quero ser. As duas coisas não eram compatíveis. Mas o curso foi muito importante também para a forma como escrevo e como me expresso verbalmente. Acho que a objetividade e a crueza que os leitores dizem ler nos livros também advém muito daquilo que estudei.

Como é ser uma jovem no mundo literário?

Claro que há algum preconceito associado à minha a idade, porque durante muitos anos se pensou, inclusivamente eu pensei, que só poderia publicar aquilo que escrevo quando tivesse alguma coisa para ensinar aos outros. Felizmente também me apercebi - e acho que os outros se vão apercebendo ao longo do tempo - que nem sempre escrevemos com a pretensão de ensinar o que quer que seja. Eu partilho aquilo que penso acerca do mundo e a forma como eu vejo as personagens num universo alternativo como uma pessoa de 26 anos, porque é essa a idade que eu tenho. Daqui a uns anos, escreverei como uma pessoa mais velha porque terei passado por outras coisas.

 


«Há algum preconceito associado à minha a idade, porque durante muitos anos se pensou, inclusivamente eu pensei, que só poderia publicar aquilo que escrevo quando tivesse alguma coisa para ensinar aos outros»


 

Fala-nos do teu processo de escrita. O que te inspira?

Maioritariamente a arte e o cinema, ou seja, os livros que leio, os filmes que vejo, os países por onde viajo. Eu passo a maior parte do meu tempo em casa. Acho que preciso de estar em casa para poder escrever de forma eficiente, mas preciso muito de sair e principalmente viajar para poder escrever mais. Escrevo todos os dias de manhã, normalmente das 9 e 30 às 12 e 30, sem telemóvel e com um medidor de tempo analógico. Sou muito crítica do meu trabalho, todos os dias começo por ler aquilo que escrevi no dia anterior, única e exclusivamente. Não leio mais para trás. 

Quais são os autores, artistas e obras que te inspiram?

Gosto muito da Elena Ferrante e recomendo a “Amiga Genial”, que foi adaptada tanto para televisão e cinema. Em Portugal, inspiram-me muito o João Tordo, a Filipa Fonseca da Silva e a Dulce Maria Cardoso. Na música, o Slow J e a iolanda. A inspiração é olhar para eles e ver coisas boas que posso incorporar em mim, que nem sempre tem que ver com carreiras bem-sucedidas e longas. Às vezes tem também que ver com a perseverança, pois são pessoas diferentes e com percursos profissionais distintos.

 

 

 

 

Como surgiu a história de “A Cicatriz”?

Até ter escrito “A Cicatriz”, normalmente eu encontrava primeiro as personagens e depois criava o sítio para elas viverem e aqui aconteceu-me o oposto. Estava no Rio de Janeiro, decidi que queria escrever uma história que decorresse aí e depois fui à procura da história que ia acontecer nesse cenário. A “Cicatriz” é um reflexo de uma das minhas maiores preocupações enquanto mulher e é também um reflexo daquilo que eu acho que é importante dizer agora. Neste momento preocupa-me a violência de género. 

Qual é a mensagem que procuras passar com os livros que escreves?

Acho que não faço parte do leque de escritores moralistas. Acho que os livros têm papéis diferentes, há livros que são puro entretenimento, depois há livros que são grandes lições de história, sociologia, psicologia, etc. Há livros que têm também algum poder educacional, digamos assim. “A Cicatriz” é um livro que pode fazer o leitor refletir sobre a violência de género. Escrevi sobre uma das coisas que mais preocupa as mulheres e acho que a mensagem que queria passar era a de que ser mulher é bastante difícil e que, enquanto sociedade, devemos trabalhar para que ser mulher, seja tão fácil ou tão difícil quanto ser homem.

 


«Acho que a mensagem que queria passar era a de que ser mulher é bastante difícil e que, enquanto sociedade, devemos trabalhar para que ser mulher, seja tão fácil ou tão difícil quanto ser homem»


 

Qual é o conselho que dás a pessoas que, tal como tu, querem ser escritoras?

Acho que o mais importante é ler. Ler muito. Sempre que alguém me diz que quer ser escritor, pergunto se gosta de ler. Se me responde que não, desconfio muito. Não conheço nenhum bom escritor que não seja o melhor leitor. Eu passo tanto tempo a ler quanto a escrever e acho que a maioria dos livros que leio são muito melhores do que os livros que escrevo. Isso, em princípio, é sinal de uma de duas coisas: ou que os meus livros não são nada bons ou que eu procuro ler autores que me estimulam intelectualmente. Pessoalmente, espero que seja esta segunda opção (risos).

Como é que era a Maria Francisca enquanto aluna?

Era muito aplicada. Sempre gostei muito e continuo a gostar muito de estudar. Uma das coisas que mais me preocupa é o desinteresse pelas coisas que não conheço. Eu era uma aluna muito aplicada e bem comportada, só um pouco conversadora (risos).