Aos 9 anos, começou a escrever. Aos 12, elaborou um livro sobre as invasões francesas para a disciplina de História. Aos 15, publicou Condensação, em poesia. Aos 24 anos, arrebatou o Prémio Leya com o romance de estreia, 'O Meu Irmão'. Aos 29 anos, acaba de receber o Prémio José Saramago por 'Pão de Açúcar', o seu segundo romance. Agora, revela outra paixão: as viagens. Em 'Leva-me Contigo' mostra-nos Portugal a pé pela Estrada Nacional 2, numa aventura de 738 kms que durou 24 dias. Esta conversa de 24 minutos passa por todos estes marcos na carreira de Afonso Reis Cabral, o escritor de quem Eça de Queiroz ainda é parente.
Acabas de receber o Prémio José Saramago. Que significado tem?
A minha primeira reação foi de enorme alegria, não por mim, mas pelo Pão de Açúcar. Hoje em dia, o tempo de sobrevivência dos livros nas livrarias é mínimo. Um prémio como este ajuda imenso a que o livro continue "vivo. Quem escreve tem sempre um instinto de proteção em relação aos livros. A alegria também se prende com a lista de anteriores vencedores que eu cresci a ler. Por último, o facto de ser um prémio com o nome de Saramago.
Logo na estreia nos romances venceste o Prémio Leya. Isso beneficiou a tua carreira?
Um dos grandes problemas de um autor desconhecido é conseguir a publicação de um livro com boas condições. O Prémio Leya, contemplando livros inéditos, garantia à partida a publicação do livro. Foi esse sempre o meu objetivo com a candidatura. Para além de me forçar a acabar o livro que estava a escrever há 3 anos. Estava a acabar o mestrado, tinha uma bolsa de investigação, um part-time: A última coisa que fazia era sempre o livro. Ao candidatar-me ao Prémio Leya tinha um prazo que me forçou acabar. Tinha a esperança que chegasse a finalista e aí já seria publicado.
Mas após venceres não sentiste pressão?
Inicialmente não. Tinha 24 anos e achava que ia ser completamente indiferente, que ia apreciar o momento da publicação do livro e dos leitores, mas que depois começava logo a escrever outro. Acontece que as coisas não são exatamente assim. Passados uns meses, já com a acalmia de tudo, impõe-se a responsabilidade de um segundo livro. Estive algum tempo a debater-me com isso e também com outra coisa em particular: a descoberta do leitor. Escrevi O Meu Irmão completamente sozinho e não com a ideia de que poderia ser lido. Foi preciso voltar a escrever sem ninguém. E isso demorou algum tempo a reconquistar. Além do mais, inicialmente, não tinha um tema para um livro. Depois fui à Alemanha de camião TIR, para relembrar uma viagem que fiz aos 13 anos e porque queria investigar para um possível livro. Acontece que esse é o livro que tento sempre escrever quando aparecem outros. Voltou a acontecer agora, pois já estou com um projeto para o terceiro romance. Em 2016, surgiu a ideia do Pão de Açúcar, só porque estava a ler uma reportagem online sobre os 10 anos do Caso Gisberta [travesti assassinato no Porto por um grupo de adolescentes].
Quando é que os livros entraram na tua vida?
Foi na infância: a minha mãe lia diariamente na cama. Isso tinha alguma coisa de encantatório, de muito fascinante. Ainda tenho esses livros e quando tiver filhos quero ler-lhos porque foram iniciáticos. A escrita foi aos 9 anos. Foi por ocasião da morte da Amália que despertei muito para a poesia. Escrevi poesia até aos 15 anos e depois passei para a prosa. É um percurso muito normal para quem escreve: verificar se somos poemas ou não. Não sou de maneira nenhuma, não tenho vocação. Gosto é de contar histórias.
Os jovens leem o suficiente?
Não. Há cada vez menos leitores, em particular de literatura. Também há o problema de muitas vezes escreverem ser ler. É preciso ler muito para sequer pensar em começar a escrever. A leitura está cada vez mais desvalorizada e fingida. Ao estarmos constantemente online e nas redes sociais, a ver só as parangonas, achamos que estamos a ler. Mas estamos é a ser dispersos. Isso também me acontece. É preciso investir na leitura. O nosso cérebro está cada vez mais deficitário na leitura, pois assume vícios. Um livro não é assim: requer silêncio, investimento, tempo.
Porque é que, nos teus romances, tentas dar voz a quem não a tem?
Acredito que se escreve um livro para escrever um livro, e não para mudar mentalidades ou influenciar a sociedade. Isso pode até acontecer, mas escreve-se um livro pela literatura, porque é preciso escrever aquilo. Em ambos os romances isso, de certa maneira, acontece, mas foi mais ou menos por acaso. Em O Meu Irmão, embora seja totalmente ficção, há uma realidade que conhecia do dia a dia porque tenho um irmão com Síndrome de Down. Aquele livro, ou um parecido, iria aparecer mais cedo ou mais tarde. No Pão do Açúcar, não conhecia nem dominava essa realidade, o que me obrigou a pôr-me na pele do outro. Esse descobrir do outro é muito importante para mim.
A literatura pode mudar o mundo?
Não. Raras vezes isso aconteceu. Por exemplo, na Alemanha nazi, altamente culta, literária, musical, o que é isso mudou?! Muito mais importante é a nossa postura no dia a dia. Claro que podemos ir buscar isso aos livros, mas depende muito de nós. É uma responsabilidade nossa.
Um livro é uma viagem?
Isso é com certeza. Um livro é uma descoberta. Às vezes, vou falar a escolas e digo que a leitura é uma viagem: não podemos ir ao Evereste, ou a 20 mil léguas submarinas ou ao passado. Dá-nos uma experiência de vida que nunca teríamos de outra forma. Na leitura encontramos armas para a vida.
Como surgiu o Leva-me Contigo?
Há anos, comecei a ouvir falar na Estrada Nacional 2, uma das maiores do mundo com esta tipologia. Gosto muito de andar, ainda que isso não seja o mesmo que andar 738 kms (risos). O Francisco José Viegas, da revista LER, propôs-me um relato de viagem. Inicialmente abordei a Marinha para ir num submarino durante 3 semanas… qualquer dia talvez consiga. E foi então que me lembrei da Estrada Nacional 2, do meu desejo de partir à aventura. E juntei as coisas. A ideia era só fazer um relato muito breve para a revista. Depois, como me propus ir pedindo ajuda às pessoas, estar dependente da sua boa-vontade e só ter as três primeiras noites marcadas, decidi ir escrevendo um diário no Facebook para dar a conhecer a viagem.
Conheceste, tal como escreves, “o lado bom e raro” das redes sociais…
As pessoas envolveram-se, numa solidariedade extraordinária. Se pensarmos nisto: é só um gajo a andar na estrada. Sozinho, sem carro de apoio. Tinha era o apoio das pessoas que iam lendo os textos e que sabiam que passaria por determinado sítio, que me davam dormida e refeição. Foi muito enriquecedor: como escritor descobri novas personagens, paisagens, circunstâncias, e como pessoa descobri novos amigos. Isso foi muito marcante. Estamos expostos ao lado mau das redes sociais constantemente. Nas redes sociais, o lado amargurado do ser humano está muito ativo. Mas, apesar de tudo, ambicionamos o bem e a felicidade. O que aconteceu nesta viagem foi esse lado bom ter sido um bocadinho menos discreto. Durante 24 dias, para além das centenas de comentários, partilhas e ajudas, não houve uma reação negativa. No livro homenageio essa ajuda e bondade publicando alguns dos comentários.
Também encaraste esta viagem como um “sacrifício que marcasse a passagem da juventude para outro estado além desta, mas ainda com regalias”. Os (quase) 30 anos estão a mexer contigo?
Alguma coisa sim. Vejo a viagem como um ritual de passagem. O importante é ganhar juventude interior. Vejo isso em pessoas mais velhas mas com tanto gosto por viver. Hoje em dia, temos o culto da juventude e, sendo ela um estado passageiro, convém investir noutras coisas, no que realmente importa, nos outros, na cultura, na formação, na ética.