O hip-hop chega a Portugal em duas fases. A primeira, por volta de 1984, dá-se pela mão do breakdance. Por conta do lançamento de filmes com o Beat Street, Portugal foi contagiado pela febre mundial à volta do breaking. Contudo, não havia ainda a noção de que este estilo de dança fazia parte de uma cultura mais abrangente.
A moda foi passageira. Mas serviu para plantar a semente que fez de Portugal um terreno mais fértil para a chegada do Hip-Hop em grande força pouco tempo depois. No final dos anos 80, o movimento chega mais a sério a Portugal, ainda que informalmente. “1994 é o ano dos primeiros discos”, começa por contar à FORUM Ricardo Farinha. “Mas eu quis também contar a história que os antecede para percebermos melhor como é que chegámos a esses álbuns em 1994”, acrescenta.
Essa história anterior a 1994 é a de uma geração de jovens adultos e adolescentes, muitos descendentes das antigas colónias, que, numa primeira fase, se mobilizava para fazer rap em zonas como o Miratejo, em Corroios. De um modo informal, foram surgindo grupos que faziam música juntos e gravavam algumas maquetes, mas ainda sem acesso a grande material de estúdio.
Mais tarde, os jovens rappers da capital reuniam-se nas festas do Trópico, um armazém nas traseiras da estação de comboios de Santos e por lá faziam rap, sendo o público composto maioritariamente por outros rappers. Com o beatbox a servir, muitas vezes, de instrumental (por falta de acesso a melhores condições), estas festas, organizadas por um jovem Boss AC, foram um importante marco na história da nossa cultura e acabaram por ser o ponto de partida para a compilação Rapública, que levou o rap a um público mais alargado. Com o selo da Sony, esta compilação foi lançada em 1994 e juntava muitos dos nomes que atuavam nas festas em Santos. Deste álbum, surge o primeiro hit de rap nacional: Nadar, faixa do grupo Black Company. O rap tinha aqui o seu primeiro pico de popularidade em Portugal.
Rap como intervenção
Apesar de um hit da dimensão de Nadar ter feito maravilhas pela popularidade do rap, para muitos, esta faixa ter sido o destaque do disco causou alguma amargura, por considerarem que não representava a verdadeira essência da cultura.
Por esta altura, em Portugal, o rap era, para além de género musical, um importante veículo para intervenção política na sociedade. Muitos dos primeiros rappers portugueses foram fortemente influenciados por grupos como os Public Enemy e pelas suas mensagens.
Ainda assim, não deixa de ser curioso que a Nadar tenha ganho uma forte conotação política. O seu refrão foi utilizado como slogan político para salvar as gravuras de Foz Côa e o termo “não sabe nadar” foi até utilizado pelo então presidente da República Mário Soares num dos seus discursos.
Intervenção e festa
Membro dos Black Company, Bambino é uma das grandes figuras da cultura hip-hop portuguesa. Começou a rimar no Miratejo, participou nas festas no Trópico e teve uma visão privilegiada dos primeiros passos mais firmes do rap em Portugal, para os quais também deu um importante contributo.
A questão da intervenção social versus festa aparece muitas vezes associada ao hip-hop. Mas, para Bambino, as duas coisas não têm que estar em confronto. Para ele, “o hip-hop sempre teve as duas partes”. “Se o pessoal ouvir o Geração Rasca, percebe que é um misto de consciência, de intervenção e festa”, começa por destacar. “Da minha parte e da minha experiência, eu vejo essas duas coisas como paralelas e eu vim destes dois paralelos”, conclui.
Na nossa conversa com Bambino, pudemos perceber não só as dificuldades enfrentadas por esta geração de pioneiros em Portugal, mas também a forma como as venceram e fizeram o hip-hop ultrapassar barreiras. Acima de tudo, o rap foi crescendo de forma orgânica, com uma geração de rappers a influenciar as seguintes pelas suas mensagens e forma de ver o mundo. Foi este o caso das outras duas pessoas com quem falámos para este artigo, Tom e Lady N, dois rappers fortemente influenciados, de forma mais direta ou indireta, por esta geração de pioneiros.
Manter a essência
Tom nasceu em 1994, o ano de lançamento do Rapública. Este rapper almadense cresceu numa época completamente diferente no que ao rap diz respeito. Confessa que apenas mais recentemente descobriu a sério o trabalho do Bambino e de Black Company, mas é fácil perceber o impacto da mensagem e forma de estar do grupo na sua própria forma de pensar a cultura hip-hop.
Ter crescido em Almada, um dos primeiros focos do movimento em Portugal, conta Tom, permitiu-lhe ter referências fortes no que toca ao rap. Apesar de ter nascido numa era mais profissionalizada, principalmente se compararmos com a era do Bambino, onde se rimava na rua e se dava concertos com instrumentais de beatbox, a essência dessa época permanece: “O teu objetivo deve ser focares-te na arte e não no retorno que ela te traz”, conta à FORUM, antes de acrescentar: “Para mim, o ‘viver disto’ é poder ter tempo e disponibilidade continuar a fazer rap. Fazer dinheiro suficiente para não ter que fazer mais nada, não é viver disto, é prosperar”.
Criar oportunidades
Lady N é uma rapper algarvia com 20 anos de rimas e muitos mais de cultura. Atraída pela sua mensagem, despertou para o hip-hop enquanto ouvinte bastante cedo. Cresceu fã de Black Company e foi inspirada pelas suas músicas que começou a escrever as suas próprias letras ainda na escola.
No movimento do Algarve em que cresceu, Lady N era a única rapariga a gravar músicas e ser parte ativa no movimento. Quando questionada sobre possíveis barreiras para uma mulher no rap, reconheceu a sua existência apesar de não terem feito parte da sua experiência numa fase inicial. “Aqui no Algarve nunca senti nenhuma barreira. Sempre me senti em família e fui muito bem acolhida”, começa por contar à FORUM.
Contudo, mais tarde, quando ganhou uma maior noção daquilo que é a indústria da música apercebeu-se que, muitas vezes, essas barreiras existiam. “Quando se entra num estúdio não olham para ti, em primeiro lugar, como artista de música”, explica, acrescentando: “A tua aparência e o teu corpo também contam”.
Apesar do longo caminho percorrido, para Lady N, ainda há mudanças a fazer. E a mudança está a ser feita pelas próprias mulheres. Projetos como o coletivo Hellas servem para que as intervenientes no movimento se possam apoiar mutuamente, criando mais oportunidades para todas. “Sem esta ajuda, não seríamos chamadas para muitos dos recintos ou festivais”, conclui.
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